Opinião
Quem é realmente democrata?
Se o PT trata o regime democrático com leviandade, temos um problema real
Por Pedro Doria
O PT considerou o processo eleitoral na Venezuela “uma jornada pacífica, democrática e soberana” poucas horas antes de o Centro Carter pedir para que sua equipe técnica deixasse o país. Diz muito — mas diz o quê? Muitos dos críticos mais contundentes do PT, e não apenas bolsonaristas, há anos vêm dizendo que o partido não tem as mais firmes credenciais democráticas. Apontam, com frequência, a indisfarçada simpatia com os governos venezuelano, nicaraguense e cubano. Não só: também com a Rússia, com a China. Vez por outra, um líder importante do partido trata o governo chinês como “democracia popular”. Tem um forte viés antiamericano que tinge a visão de mundo petista.
Só que o debate precisa ser mais profundo do que isso. Vivemos no Brasil uma situação de fragilidade democrática e há duas forças políticas que concentram votos o suficiente para lhes carregar ao segundo turno. Esta é uma realidade estatística que, tudo indica, permanecerá de pé no pleito de 2026. Uma banda tem Bolsonaro por líder, a outra vai de Lula. São votos fiéis, concentrados em movimentos sólidos e orgânicos. Não é coisa que vai se quebrar tão cedo. Uma investigação da Polícia Federal já deixou claro que Bolsonaro botou três generais do Exército e um comandante da Marinha para tentarem coordenar um golpe militar. Se o PT é uma força que trata o regime democrático com leviandade, temos um problema real.
Mas, então, do que falamos quando dizemos “democracia”?
Bem: antes, um adendo necessário. No Ministério da Justiça, durante a fase dura da Operação Lava Jato, José Eduardo Cardozo não fez um movimento contra a Polícia Federal ou o Ministério Público. Quando sofreu o impeachment, Dilma Rousseff desceu a rampa do Palácio do Planalto. Acusou de golpe, sim. É seu direito ler o país e a política como desejar. E, no entanto, desceu a rampa do Planalto quando o Congresso lhe tirou o mandato. Mesmo Lula, quando condenado à prisão, poderia ter-se asilado, não faltariam países que o acolhessem nem dinheiro que lhe oferecesse uma vida confortável. Não. Fez um discurso, foi aos braços do povo para uma foto política e entregou-se à polícia.
O PT pode ser acusado de corrupto — o Mensalão e o Petrolão estão aí de prova. Mas se o teste de democracia for não ser corrupto, aí não há partido com relevância eleitoral que passe nele em todo o país. O PT fez uma oposição duríssima, por momentos até desleal, que o digam Fernando Henrique, Marina Silva, tantos outros. Formou também uma bancada de parlamentares sérios, preparados, dignos, combativos. O PT faz política, faz com competência como atestam seus resultados eleitorais ao longo da história, e isto não é pouco. O ato de fazer política e, nos momentos em que lhe são mais adversos, respeitar os ritos do regime, são sinais de respeito à democracia.
Não há sinal de qualquer comportamento similar dentro do núcleo bolsonarista.
Defendem que medidas de força como as tomadas por Ortega, na Nicarágua, e Maduro, na Venezuela, são legítimas contra 'neoliberais', contra o 'imperialismo ianque'.
E, ainda assim, o PT não é, nem nunca foi, monolítico. Mesmo que se ignore a paranoia conspiratória olavista a respeito do Foro de São Paulo, núcleos importantes do partido defendem que a “democracia burguesa” é algum tipo de complô contra a esquerda. Tratam quem não é de esquerda como forças políticas ilegítimas. “Fascistas.” Defendem abertamente que medidas de força como as tomadas por Daniel Ortega, na Nicarágua, e Nicolás Maduro, na Venezuela, são legítimas contra “neoliberais”, contra o “imperialismo ianque”. É perfeitamente razoável perguntar se, em podendo, não defenderiam o mesmo comportamento no Brasil. Por coerência, sim, defenderiam. É só que não temos como testar. A manutenção de uma ditadura vem necessariamente com o apoio das armas, e as Forças Armadas brasileiras têm uma cultura antiesquerda. Golpes, no Brasil, vêm pela direita. Sim, inclusive o de Getúlio Vargas em 1937. O fato de não termos como testar não impede de concluir, a partir do discurso de muitos, inclusive na liderança petista, que há no mínimo uma incompreensão, mais possivelmente descaso com a essência fundamental do que é democracia.
Um jeito de ver o mundo
Então, quando falamos de democracia liberal, do que estamos falando? Ela é mais do que um regime, é um jeito de entender o mundo. E o PT, cada vez mais, demonstra não compreender o mundo deste jeito.
O Centro Carter foi fundado em 1982 pelo ex-presidente americano Jimmy Carter. Ele é uma figura ímpar por ter sido muito mais impactante como político após deixar a presidência dos Estados Unidos. No governo, beirou a incompetência. Fora do cargo, sua integridade pessoal levou à construção de uma das instituições não-governamentais mais importantes do mundo. O Centro Carter é reconhecido principalmente pelo seu trabalho de acompanhamento de eleições. Mas não é por isso que nasceu. Nasceu para promover a paz no mundo, o combate a doenças tratáveis e construção de esperança para o futuro na forma de apoio à fortificação de economias capazes de crescimento sustentável.
Então de onde vem o monitoramento eleitoral? É ideológico. É uma ideologia, um jeito de compreender como o mundo funciona, que leva à conclusão de que paz, saúde e bem-estar, além de economias que se sustentam, se baseiam em Democracias Liberais. O que os técnicos da ONG perceberam rapidamente é que era preciso criar, nos países em que atua, democracias estáveis. E, para isso, começa de um jeito. Disseminando a cultura técnica de como realizar eleições justas e livres.
Nesta manhã de quarta-feira, o Centro Carter publicou sua avaliação da eleição de domingo, na Venezuela. “O pleito não correspondeu aos padrões internacionais de integridade eleitoral e não pode ser considerado democrático”, afirmou. “O Centro Carter não pode corroborar os resultados declarados pelo Conselho Nacional Eleitoral e o fracasso em tornar públicos os resultados desagregados de cada seção demonstra um rompimento sério dos princípios eleitorais.”
A diferença fundamental entre um liberal-democrata e as outras ideologias é o otimismo pragmático em relação à natureza humana.
A diferença fundamental entre um liberal-democrata e as outras ideologias é o otimismo pragmático em relação à natureza humana. Marxistas e reacionários enxergam a natureza humana como uma de embate entre grupos. Um tipo de disputa onde, para que um ganhe algo, o outro necessariamente perde. Liberais-democratas acreditam que as diferenças são negociáveis. Que conforme sociedades criam uma cultura de contínua negociação das diferenças, elas não vão desaparecer. Mas, através de respeito pelas diferenças e costura de acordos, constrói-se um ambiente onde há liberdade, há dignidade e há a possibilidade de cada pessoa ser o melhor que pode ser. Há oportunidades.
É uma distinção ideológica irreconciliável. Quem acredita que em todo acordo, para que um ganhe, o outro sempre perde, não conseguirá jamais acreditar numa sociedade baseada em acordos continuados. Ou na expectativa de boa fé da possibilidade de acordos.
É isto que leva a direita bolsonarista a considerar intolerável que a esquerda chegue ao poder. É isto que leva um naco da esquerda brasileira enxergar em quem não é de esquerda um facilitador de fascistas. Não se crê na boa fé, na conciliação entre opiniões distintas. Aquele que discorda precisa ser um inimigo.
A teoria democrática é sofisticada e é pragmática. Não considera que todos ficarão felizes sempre com os acordos possíveis, não acha que haverá igualdade econômica jamais. Mas leva em conta que o essencial para uma vida digna é possível de ser garantido. Filósofos como John Rawls vão além, e propõem que a cultura de acordos criada em sociedades democráticas fazem com que dois países democratas nunca entrem em guerras. Porque resolvem suas diferenças nas mesas de negociação.
Isto quer dizer que, sim, países convictamente democráticos se preocupam quando os vizinhos passam por rupturas democráticas. É uma ameaça à segurança regional e é uma ameaça de contágio. Democracias espalham democracias na vizinhança, como ditaduras espalham ditaduras. Democracias, verdadeiras democracias, raramente são de todo nacionalistas. Elas compreendem a necessidade de fóruns internacionais para resolver as diferenças.
O Carter Center é ideológico. Manifesta sua ideologia por suas palavras e ações. Vale para qualquer instituição. Todos manifestamos nossa ideologia por palavras e ações.
Diretor de jornalismo do Meio
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