Opinião
Quem decide o que é democrático?
Um regime é democrático se, e somente se, as pessoas são livres para escolher e remover governos
Por Adam Przeworski
O que estamos defendendo quando defendemos a “democracia”? O que organiza a resposta a essa pergunta é a distinção entre a democracia como um método para processar quaisquer conflitos que possam surgir em uma determinada sociedade e a democracia como uma personificação de valores, ideais ou interesses que diferentes grupos de pessoas querem que a democracia realize. Essa é uma distinção entre concepções minimalistas e maximalistas de democracia e, por “concepção”, refiro-me a uma definição que tem conotações normativas, como todas as definições de democracia.
A democracia é um sistema no qual os cidadãos decidem coletivamente por quem e, até certo ponto, como serão governados. Essa característica é definidora: um regime é democrático se, e somente se, as pessoas são livres para escolher e remover governos.
Na concepção minimalista, isso é tudo o que há na democracia. Contanto que todos os pré-requisitos para que os cidadãos escolham livremente os governos sejam cumpridos e as decisões políticas sejam tomadas de acordo com os procedimentos estabelecidos, qualquer coisa que os eleitores decidam é democrática.
É verdade que os eleitores decidem apenas indiretamente, elegendo legislaturas: as leis são adotadas pelas legislaturas, não pelos eleitores. Mas se a legislatura é livremente eleita e segue os procedimentos na promulgação das leis, e se as leis são devidamente cumpridas, a democracia não é questionável.
Nessa concepção, o valor da democracia é intrínseco. É a própria capacidade dos cidadãos, como coletividade, de escolher governos. No entanto, essa capacidade não está sempre disponível: ela possui pré-requisitos. Já John Stuart Mill pensava que “os dois elementos da democracia” são “altos salários e leitura universal”. A democracia é um sistema de direitos positivos, mas não gera automaticamente as condições necessárias para o exercício desses direitos. Como observam Tom Ginsburg e Aziz Huq,
Para que a competição eleitoral genuína seja sustentada… é necessário algo além de um mínimo absoluto de arcabouços legais e institucionais. Requer também o emprego de direitos civis e políticos no processo democrático, a disponibilidade de uma máquina eleitoral neutra e a estabilidade, previsibilidade e publicidade de um regime legal geralmente capturado no termo “Estado de direito”.
Nesse sentido, portanto, a concepção que reduz a democracia a eleições livres e justas, às vezes criticada como “eleitoralismo”, não é tão “mínima”.
Embora o critério minimalista seja conceitualmente claro, surgem divergências operacionais: basta ver como diferentes pesquisadores classificaram a Rússia ou a Venezuela nos últimos trinta anos. Particularmente evasivas são as medidas que Ozan Varol classifica como “furtivas”. Essas são ações aparentemente democráticas que visam aumentar a vantagem eleitoral de um governante.
Nas concepções maximalistas, a democracia é um método para realizar certos valores extrínsecos. Como observou Joseph Schumpeter, a maioria das pessoas valoriza a democracia não por ela em si, mas porque esperam que ela realize alguns valores, ideais ou interesses superiores que consideram desejáveis. Schumpeter dá exemplos, mas não reduz a lista a um conjunto fixo de itens:
Existem ideais e interesses últimos que o democrata mais ardente colocará acima da democracia, e tudo o que ele quer dizer quando professa uma lealdade intransigente a ela é que está convencido de que a democracia garantirá esses ideais e interesses, como liberdade de consciência e de expressão, justiça, governo decente e assim por diante.
De fato, quase todos os aspectos normativamente desejáveis da vida política, e às vezes até da vida social e econômica, são creditados à democracia: representação, responsabilidade, igualdade, participação, justiça, dignidade, racionalidade, segurança; a lista continua. Ouvimos repetidamente que “a menos que a democracia seja X ou gere X, então…” As reticências raramente são explicitadas, mas insinuam que um sistema no qual os governos são eleitos não é uma “democracia” a menos que a condição X seja cumprida.
Sempre que as pessoas discordam sobre os valores ou interesses que desejam que a democracia realize, as concepções maximalistas geram conflitos.
Obviamente, quanto mais valores atribui-se à democracia, menos propenso se está a encontrá-la. Além disso, como indicam suas listas, os valores que as pessoas atribuem à democracia podem diferir: é por isso que me refiro a “maximalismos” no plural. Mais importante, sempre que as pessoas discordam sobre os valores ou interesses que desejam que a democracia realize, as concepções maximalistas geram conflitos. É verdade, como enfatizou Lewis Coser, que esses conflitos podem ser “transversais”: eles não precisam colocar classe contra classe ou religião contra religião. Eles podem ser atenuados por um “consenso sobreposto” em relação a aspectos práticos que é compatível com diferenças em torno de valores. Os conflitos também podem ser moderados por discussões públicas tanto no nível normativo quanto no técnico. No entanto, no final, quando todas as coalizões se formaram, os contornos do consenso prático tomaram forma, e os argumentos chegaram ao fim, os conflitos permanecem.
A questão, então, é o que estamos defendendo quando defendemos os valores extrínsecos que atribuímos à democracia, digamos, justiça ou igualdade econômica. Estamos defendendo a própria democracia, ou os valores que atribuímos a ela? E qual é a resposta a essa pergunta quando diferentes pessoas atribuem diferentes valores à democracia?
O problema
O problema hoje é que todo mundo é “democrata”. O fascismo e o comunismo foram alternativas à democracia racionalmente motivadas, elaboradas e amplamente atraentes. No entanto, enquanto o epíteto “fascista” é usado de maneira indiscriminada nos dias de hoje, o fascismo está morto. Em contraste com a União Soviética, a República Popular da China não busca propagar seu sistema político para outros países. A retórica democrática é usada em todo o espectro político.
Por exemplo, o propagandista de Putin, Mikhail Leontiev, declara: “Não entendo o que tem de antidemocrático no fato de que uma força que goza de um apoio social esmagador vence as eleições”. Donald Trump afirma que “nosso movimento busca substituir um establishment político falido e corrupto — quando digo ‘corrupto’, quero dizer totalmente corrupto — por um novo governo controlado por você, o povo americano”. Os Democratas Suecos, um partido com raízes autenticamente fascistas, agora professam seu compromisso com a democracia. O mesmo acontece com o Partido da Liberdade da Áustria e a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni e seu partido Irmãos da Itália.
Agora, Putin adotou medidas abertas e dissimuladas que tornaram sua remoção do cargo impossível. Trump tentou, mas foi incompetente demais para torná-las eficazes. Tais tentativas são antidemocráticas pelo critério minimalista. Mas Meloni, os Democratas Suecos e o Partido da Liberdade da Áustria governaram sem tomar nenhuma medida que violasse as normas minimalistas. A “extrema direita” da Europa Ocidental apela vagamente aos “valores tradicionais” e é programaticamente anti-integração europeia, anti-imigração, anti-Islã e “anticrime”, mas respeita as pré-condições para a democracia.
Mais ainda, a direita da Europa Ocidental tem se mantido longe de questões culturais, enquanto os partidos de direita variam em suas posições sobre questões econômicas. No Leste Europeu, as questões culturais são mais proeminentes, com a adoção de várias políticas homofóbicas e anti-igualdade de gênero. Nesse aspecto, os republicanos nos Estados Unidos estão mais próximos de seus colegas à direita do espectro político do Leste Europeu do que dos da Europa Ocidental. Quando os valores que diferentes pessoas atribuem à democracia entram em conflito uns com os outros, quem decide o que é ou não é “democrático”?
Os tribunais desempenham um papel importante na supervisão das pré-condições para o livre exercício da vontade coletiva, zelando pelo cumprimento das regras que regem as eleições. Os juízes, portanto, são guardiões da democracia no sentido minimalista. Mas os maximalistas ainda podem recorrer ao constitucionalismo para afirmar que, mesmo que os pré-requisitos para a concepção mínima sejam satisfeitos, a democracia não está implementando os valores que deveria. As constituições incorporam o “maximalismo” no sentido de que especificam certos valores que nenhuma maioria transitória pode violar. O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos menciona não apenas “justiça”, mas “tranquilidade interna” e “bem-estar geral”.
Os maximalistas podem, portanto, alegar que as violações dessas normas por maiorias temporárias podem ser democráticas, mas não são constitucionais. Existem órgãos de revisão constitucional, tanto dentro quanto fora das legislaturas, para ouvir apelos a valores consagrados nas constituições. A premissa é que a “vontade do povo” reside na constituição, e não em alguma maioria transitória.
Crise da democracia?
As últimas três décadas testemunharam o aumento da insatisfação com as instituições representativas tradicionais, a erosão e fragmentação dos sistemas partidários tradicionais, a ascensão de partidos de extrema direita e o surgimento de “mágicos” políticos na forma de indivíduos ou partidos que oferecem soluções milagrosas. Essas transformações levaram a uma preocupação generalizada com o futuro da democracia, expressa em inúmeros livros e artigos que fazem um alerta sobre “A Crise da Democracia”. Eu escrevi um desses livros. Este ensaio constitui minhas reconsiderações.
Essas transformações representam uma ameaça à democracia ou um avanço da democracia?
A intensa e generalizada insatisfação com as instituições representativas é frequentemente criticada como “populismo”. A validade das críticas às instituições representativas é manifesta. É incorreto falar da rejeição generalizada a essas instituições e ao mesmo tempo lamentar a persistência da desigualdade. A desigualdade oferece evidência prima facie de que as instituições representativas não funcionam bem.
O “populismo” vem em pelo menos duas variedades: “participativo” e “delegativo”. O populismo participativo é a demanda para nos governarmos; o populismo delegativo é a demanda para sermos bem governados por outros. Como fenômeno político, a primeira variedade é salutar, mas em grande parte inconsequente, enquanto a segunda é perigosa para a democracia, no sentido minimalista de democracia.
A agenda do populismo participativo consiste em reformas institucionais que tornariam “a voz do povo” mais ouvida. Uma inovação do Brasil, e que tem recebido atenção mundial, é o orçamento participativo. Outras propostas vão desde a inútil “democracia de pesquisa” defendida pelo Movimento Cinco Estrelas da Itália, até o aumento da dependência de referendos de iniciativa popular e assembleias de cidadãos selecionados aleatoriamente e encarregados de ponderar sobre projetos de leis sem a autoridade para aprová-los. No entanto, todas essas medidas são meramente paliativas. Toda decisão possível irá desagradar alguém, mesmo que seja uma decisão tomada com a participação plena, igual e efetiva dos cidadãos. Não existe “o povo” no singular, e as pessoas no plural têm diferentes interesses, valores e normas.
A alternativa a nos governarmos é sermos governados por outros, mas sermos bem governados. O que as pessoas mais querem é serem governadas por alguém que entrega o que a população quer, seja o crescimento da renda, a promoção de certos valores ideológicos, ou o que for. O populismo “delegativo” ocorre se as pessoas querem que o governo governe mesmo quando elimina as restrições à sua permanência no cargo e à autoridade discricionária. O resultado é o “retrocesso democrático” (também conhecido como “desconsolidação”, “erosão” ou “recessão”). Ginsburg e Huq descrevem isso como “um processo de decadência incremental (mas, ainda assim, substancial) dos três predicados básicos da democracia: eleições competitivas, direitos liberais de expressão e de associação, e Estado de direito”.
À medida que esse processo avança, a oposição torna-se incapaz de vencer as eleições (ou de assumir o cargo se vencer), as instituições estabelecidas perdem a capacidade de controlar o Executivo, e as manifestações populares são reprimidas a força. O perigo do populismo delegativo é que uma maioria apoiará um governo que entrega o que a maioria quer, mesmo quando esse governo subverte as instituições democráticas.
Por sua vez, o declínio dos partidos mais antigos e a ascensão de novos não são antidemocráticos por nenhum critério. A ascensão de partidos de extrema direita não é antidemocrática. O medo da extrema direita é justificadamente alimentado pela preocupação de que esses partidos possam tentar minar a democracia. No entanto, desde que esses partidos se abstenham de tentar minar a possibilidade de serem removidos do cargo, e desde que observem as regras institucionais que controlam a formulação de políticas, sua participação nos governos não será antidemocrática.
O surgimento de mágicos políticos também não é antidemocrático. Isso apenas mostra que, quando as pessoas se cansam das alternativas tradicionais, estão dispostas a correr o risco de abraçar soluções não testadas.
Em suma, portanto, a rejeição das instituições representativas apresenta um dilema. Não podemos fingir que essas instituições estão funcionando bem, mas as soluções não são óbvias e algumas são perigosas para a democracia. Por sua vez, nem a proliferação de partidos, nem a ascensão da extrema direita, nem o surgimento de mágicos constituem uma ameaça à democracia no sentido minimalista, sempre com a mesma ressalva de que essas democracias evitem o retrocesso.
Defendendo a democracia
Ao declarar o advento da democracia na Espanha pós-Franco, o primeiro-ministro Adolfo Suárez proclamou que, daqui em diante, “o futuro não está escrito, porque apenas o povo pode escrevê-lo”. Ele esperava por um mundo melhor e eu acreditei em suas palavras. Mas as pessoas podem escrever o que quiserem. A democracia não garante nada além de que são as pessoas que escreverão o futuro. É apenas um terreno no qual pessoas mais ou menos iguais e mais ou menos livres lutam pela realização de ideais, valores e interesses conflitantes. O único milagre da democracia é que esses conflitos podem ser administrados sem repressão e em paz.
Quando as pessoas discordam sobre quais valores a democracia deve se esforçar para alcançar diante da crescente polarização, a democracia só pode ser defendida como o melhor método para administrar essas divergências. No entanto, é difícil defender os métodos sem referência aos propósitos a que se destinam. Como observa Eerik Lagerspetz, “há algo profundamente perturbador na ideia de que um procedimento puramente mecânico e sem conteúdo possa determinar o que devemos fazer”. No entanto, o próprio procedimento de escolha de governos por meio de eleições tem méritos que se sustentam por si só.
Um desses méritos é a precaução. Matthew Graham e Milan Svolik reuniram evidências sugerindo que as pessoas podem estar dispostas a tolerar transgressões de normas e procedimentos democráticos em troca de alguns resultados materiais ou simbólicos que valorizam. Quando os governantes minam a democracia, seus apoiadores enfrentam um dilema: eles podem manter o atual governo competente, mas violador de normas, no poder, com um custo para a capacidade de removê-lo no futuro, ou podem proteger a democracia agora, ao custo dos resultados de política que estão recebendo.
A segunda virtude é a pacificação da vida política. O método democrático de processar conflitos por meio de eleições livres é a única maneira de gerenciar conflitos sem recorrer à violência. Nas palavras de Norberto Bobbio, “o que é a democracia, senão um conjunto de regras […] para a solução de conflitos sem derramamento de sangue?”. As eleições não são o único mecanismo para processar conflitos; também o são os sistemas judiciais e de negociação coletiva. A diferença está no fato de que a participação nas eleições é aberta a todos os cidadãos.
Os democratas devem estar preparados para enfrentar derrotas, mesmo que seus valores estejam em jogo.
As eleições podem gerar resultados que uma minoria considera repulsivos. Mas os democratas devem estar preparados para enfrentar derrotas, mesmo que seus valores estejam em jogo. A virtude do método democrático é que, desde que a democracia seja preservada, as derrotas são sempre temporárias. A democracia sobrevive quando os vencedores não abusam de seu poder, mas também quando os perdedores estão dispostos a esperar. Essa é a magia do método democrático.
E se as pessoas seguirem líderes que prometem empoderá-las e depois usurparem o poder, privando o povo da capacidade de removê-los? Para colocar da maneira mais clara possível: e se as pessoas votarem contra a democracia? A constituição não deve ser um pacto suicida, mas quem deve decidir que estamos cometendo suicídio?
O perigo de que os governantes possam minar o mecanismo eleitoral está sempre presente. Portanto, a vigilância em defesa da democracia no sentido minimalista é uma tarefa sem fim. Mas defender a democracia requer mais do que se opor ao que o governo está fazendo. Defender a democracia requer um programa positivo e orientado ao futuro, para reformá-la. Essa não é uma tarefa fácil. Ser contra algo une, enquanto ser a favor de algo divide.
Na minha opinião, o principal culpado pela insatisfação generalizada com as instituições representativas é a desigualdade política gerada pela influência do dinheiro sobre a política. Mas outros podem discordar. Além disso, as direções nas quais as reformas podem se mover variam de acordo com as circunstâncias. Minha conclusão é que, para dar às forças políticas conflitantes uma renovada confiança nos métodos democráticos, os defensores da democracia devem oferecer uma perspectiva voltada ao futuro, que busque melhorar as instituições representativas.
Adam Przeworski é professor emérito de política da Universidade de Nova York. Seus livros incluem "Why Bother with Elections?" [Por que se preocupar com as eleições?] (2018) e "Crises of Democracy" [Crises da democracia] (2019). Este artigo inédito estará na íntegra no Journal of Democracy, que será publicado em outubro pela Plataforma Democrática (Fundação Fernando Henrique Cardoso e Centro Edelstein de Pesquisas Sociais). Outras edições do periódico estão estão disponíveis gratuitamente.
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