Opinião
A 'Teologia Coach' pede voto
O que sujeitos da cena gospel tais como Pablo Marçal e Tiago Brunet já nos indicavam sobre as novas estratégias eleitorais
por Ana Carolina Evangelista
Qualquer que seja o resultado do processo eleitoral na cidade de São Paulo, temos uma certeza antiga e outra bem recente: é a eleição mais nacional das mais de cinco mil cidades que irão às urnas este ano, e já é uma eleição sobre o novato político Pablo Marçal e suas estratégias, mesmo que ele nem chegue no segundo turno.
Mas o que nos ensina quem já estava analisando as estratégias de uma emergente e sedutora forma de teologia que preliminarmente está sendo chamada de "Teologia Coach" e que o Brasil inteiro passou a conhecer nas últimas semanas?
O teólogo e jornalista Ranieri Costa, em seu trabalho Teologia Coaching: a ilusória ideologia de que nascemos só para vencer, analisou os discursos em redes sociais do que ele chamou de “sujeitos enunciadores da Teologia Coach”. Trata-se de uma pesquisa empírica importante, feita ao longo de 2021 e 2022 e publicada no início deste ano.
A hipótese inicial comprovada por Costa é de que a chamada “Teologia Coach” carrega em sua construção discursiva as marcas presentes na sua antecessora, a Teologia da Prosperidade: a promessa de enriquecimento, a felicidade ininterrupta como meta, a superação como elemento central e o anseio pelo sucesso. Esses sujeitos adotam estratégias, há mais de uma década, intimamente conectadas à abordagem coaching no contexto de uma sociedade recortada por práticas e experiências de consumo e altamente midiatizada, assemelhando-se à Teologia da Prosperidade e aos discursos chamados neopentecostais.
“Uma pregação de uma mensagem que convida os ouvintes a terem tudo, inclusive o controle sobre seus destinos, de forma que toda e qualquer negatividade seja desconsiderada”, afirma Costa. Mas o que isso tem a ver com política eleitoral?
Revisando esse trabalho, talvez tenhamos elementos para analisar perguntas muito recorrentes nos últimos dias para quem está acompanhando as eleições municipais. Duas delas: por que evangélicos indicam prioritariamente voto em Pablo Marçal para prefeito de São Paulo? Pablo Marçal é um personagem político impulsionado apenas pelas redes sociais?
Tiago Brunet está presente nas redes sociais desde 2012, quando se apresentava como pastor, com um perfil ainda muito low profile que foi crescendo exponencialmente ao longo dos anos. Hoje ele se apresenta em suas redes como mensageiro das Boas Notícias, teólogo, professor e palestrante; o criador de "O Método Destiny" e autor do livro Princípios Milenares. Já Pablo Marçal aparece mais ativamente nas redes alguns anos após Tiago, em 2017, mas já com um perfil orientado a turnês muito bem organizadas de formação coach pelo estado de Goiás, sua região natal, e depois pelo Brasil. Desde sempre se diz evangélico, mas nunca pastor. Foi adotando uma espécie de “identidade evangélica light”, sem se mostrar diretamente ligado a nenhuma Igreja ou Denominação específica. Afirma que "ser cristão é um life style“, ”ser cristão é ter seu corpo como templo do Espírito Santo“.
Destaque-se um dos elementos da estratégia da ”Teologia Coach“ adotada por Marçal há anos e fortemente explorada agora em períodos eleitorais, que se conectam com a Teologia da Prosperidade. Como destacou Ranieri em seu trabalho, ambos os pregadores das duas teologias buscam ”satisfazer, na terra, todas as vontades, necessidades e desejos humanos por meio de uma vida abundantemente próspera e de ininterrupta felicidade material“. No entanto, lembra o teólogo, há uma diferença importante – e os personagens em questão jogam com isso criando múltiplos sentidos e formas de reconhecimento e eco nas crenças das pessoas e conexões com o que projetam para a política e esperam que ela entregue para suas vidas: ”A Teologia da Prosperidade busca a prosperidade por meio da negociação com o divino, em uma espécie de barganha, enquanto a Teologia Coaching acredita que o sujeito precisa apenas de si mesmo, de sua força interior, para chegar a esse lugar de sucesso. Uma coloca Deus contra a parede, a outra coloca-se na condição de deus de si".
O conceito central é: não há limites para si, nada é impossível.
O conceito central é: não há limites para si, nada é impossível. E isso hoje está sendo transposto para a representação política. Em outras palavras, vote em mim porque eu sou o exemplo encarnado de que tudo é possível, não há limites e eu entendo as dores de todos vocês e os obstáculos que todos precisam superar. Eu, meu corpo, minha mente, já superaram, eu sei o caminho e posso guiar a todas e todos.
Marçal e Brunet são alguns dos expoentes de um universo muito mais amplo de “pregadores coach” - como Claudio Duarte, Deive Leonardo, Talitha Pereira, Shirleyson Kaisser, Carol Marçal, Viviane Martinello e muitos outros. São nomes que atuam na vida real, vistos como referência espiritual nas mais variadas áreas da vida das pessoas, mas que usam o digital como ferramenta fundamental. Num nicho de atuação diverso que passa por coaching e família e relacionamento, coaching pessoal ou coaching de vida (lifecoaching), emagrecimento, coaching de carreira, de liderança, de vendas, performance, empresarial, passando pelo coaching espiritual e, muitas vezes, cortado por ele em todos os demais exemplos.
Tal atuação caracteriza-se por quatro estratégias principais: (1) construção de uma imagem de si clara e contundente onde não há espaço para a negatividade; (2) influência com base no engajamento constante, e crescente, com o público via redes sociais onde o atrativo é aprender as formas de atingir o sucesso que eles mostram a todo tempo que já atingiram; (3) pregação do sucesso financeiro como o principal; (4) alusão sempre, direta ou indireta, à teologia da prosperidade com pregações que misturam textos bíblicos com frases motivacionais sempre alinhadas aos pilares da positividade, sucesso e controle sobre o próprio destino desde que se dedique o suficiente, sempre.
Ou seja, se você semear, e se dedicar, seu futuro será, sim ou sim, próspero, fora do comum, sobrenatural, extraordinário.
Ideia de protagonismo
Tanto Tiago Brunet como Marçal, mesmo atuando em regiões diferentes do Brasil, com públicos diferentes e complementares, pela forma como criam presença e onipresença, mesmo onde não estão, vão produzindo sentidos comuns compreendidos por todos a partir de semelhanças em suas marcas (produtos, empresas, cursos) e em suas estratégias, sempre comunicando para pessoas que buscam serem protagonistas. E aqui a ideia de protagonismo é fundamental, “oferecendo aos indivíduos a crença de que podem ser heróis de si”.
No centro da “Teologia Coaching” a única impossibilidade é o fracasso.
Nos discursos e estratégias analisados por Ranieri Costa, a ênfase no sucesso financeiro, por exemplo, vem sempre acompanhada da expectativa de que o status de ser bem-sucedido alcance todas as áreas da vida das pessoas. No centro da “Teologia Coaching” a única impossibilidade é o fracasso. Nada é impossível se você se dedicar.
Um evento promovido por Marçal em 2021, e analisado por Ranieri em seu trabalho, é emblemático de muitas dessas táticas e camadas que depois ele aplicaria como estratégia eleitoral. O encontro “O Chamado dos Generais do Reino”, realizado na cidade de Goiânia (GO) num ginásio para mais de 15 mil participantes, reuniu outros influenciadores e expoentes desse campo coach-gospel, com foco em três temas: finanças, relacionamento e fé. Nas palavras do próprio Marçal: “um verdadeiro sucesso marcado pela superação de várias pessoas que estiveram presentes. Esse não foi apenas um evento motivacional, foi um verdadeiro divisor de águas, onde as pessoas renasceram e agora vão prosperar”. E aqui a palavra superação não é um termo casual. Nesse evento, o coach-pregador tentou fazer uma mulher cadeirante andar, mas o milagre não ocorreu e no final a plateia recebeu a culpa pelo fracasso porque não se concentrou suficientemente.
Com esse mosaico de estratégias e performances, estamos falando, portanto, de uma teologia, uma interpretação, um pensamento direcionado para um tipo de sociedade – a de consumo – e de público que quer encontrar o sucesso onde quer que esteja. Ou seja, um tipo de sociedade que virou praticamente regra geral e um público que é cada vez mais amplo. Ao mesmo tempo, uma “teologia” inerentemente online, que não respira se não for pela estratégia de difusão garantida pelas mídias digitais, especialmente as redes sociais.
Por fim, como registra Ranieri Costa: “Os discursos que analisamos estão investidos de sentidos de hedonismo, busca por reconhecimento e visibilidade, evidenciando relativa negação da dor e das perdas da vida”. Essa estratégia, adotada por Brunet, Marçal e muitos outros, e semeada já há alguns anos, encontrou a plataforma eleitoral deste ano: deu match. Um match perigoso e de consequências por ora incertas, mas ainda assim um grande match.
Ana Carolina Evangelista é cientista política com mestrado em relações internacionais pela PUC-SP e em gestão pública pela FGV-SP. É pesquisadora e diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Faz cobertura eleitoral desde 2018 com colunas na 'piauí' e no 'UOL'.
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